Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.
"Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.
O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho".
Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é
que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus
olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que
relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado.
Mas eles não o
reconheciam.
Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se
abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em
Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário
foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa -
garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em
construção".
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu
gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria
a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da
banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar
"olhos vagabundos"...
RUBEM ALVES
O texto acima foi extraído da seção "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004.